Monday 26 March 2018

Uma enfermeira chamada Mariana!

Eu normalmente não falo do meu trabalho, pelas mais variadissímas razões, desde a confidencialidade, ao facto de que nem toda a gente se sente bem com os assuntos relacionados com a saúde, porque o blog não é tão focado ao meu trabalho.

Mas hoje a enfermeira dentro de mim tem a necessidade de exprimir... Hoje vivi um dos momentos mais intensos da minha carreira.

A Morte.

Palavra que ninguém gosta, mesmo os enfermeiros, e apesar do que as pessoas pensam os enfermeiros não tem uma pedra em vez de um coração, sofremos como pessoas, como humanos que somos, com o passar dos tempos vamos arranjando mecanismos de coping que nos ajudam no nosso quotidiano.

Tentamos deixar o trabalho no «office» como toda a gente, para nos mantermos minimamente mentalmente sãos, no entanto, trazemos no coração muitas das pessoas que cuidamos porque aprendemos magnificas lições todos os dias.

Eu tenho uma lista de caras, no coração de almas que partiram comigo, não foram muitas, mas já os que ajudei a voltar para os seus familiares perdi-lhes a conta e isso é o que me faz ter esperança todos os dias.

Não somos santos, nem deus, nem criatura divida, não fazemos milagres.

Confesso que gostava de o fazer, curar toda a gente, acabar com a morte no mundo, vida eterna e saúde para toda a gente, mas não posso!

Mesmo quando as famílias me imploram que faça mais, não nos é possível, às vezes o corpo e a pessoa já estão tão cansados que mesmo com a nossa ajuda não aguentam mais.

Decidi escrever-vos depois de ter dormido, porque neste momento os meus mecanismos de coping já fizeram a sua magia e já me sinto melhor com a situação.

Velhinho  de 80 anos, [ quando vim para este pais achava que ter 80 anos era ser velhinho, mas não é verdade, depois de tantos idosos com mais de 100 anos que nos atravessaram as portas, a minha avó está quase a chegar a essa idade, os avós do Paulo já a ultrapassaram, por isso ] Adulto masculino, 80 anos, chegamos ao turno e ele não parecia ser dos pacientes mais doentes do serviço, a esposa sentiu que devia ficar com ele, a filha esteve até tarde com ele, e nós deixamos, somos mais flexíveis do que se imagina, chegou a uma altura da noite que a filha foi para casa e por magia ele deteriorou [ acontece, mais frequente do que as imaginamos, às vezes eles aguentam-se ali, fortes, até alguém muito especial abandonar o hospital, e aí eles abrandam a sua luta ].

Tentamos tudo, os filhos foram chamados, e o senhor acabou a suspirar pela última vez nos braços da sua esposa que chorava abraçada a ele, com os seus filhos ali e comigo ali, sem puder fazer nada enquanto a filha e a esposa imploravam que eu fizesse.

Estava a responsável de serviço, e era no turno o membro da equipa mais sénior, por isso assumi o meu posto e as minhas responsabilidades.




Quando eu era uma enfermeira bebé achava que o enfermeiro não abraçava, que o enfermeiro era rijo, que o enfermeiro era um super ser sem emoções... Não podia estar mais enganada!

Pois bem, hoje em dia não fujo quando as pessoas se agarram a mim a chorar. Não tenho medo desse abraço e dou-o com mais força do que qualquer outro abraço, o mundo desabou para aquela família naquele momento, mas a vida terá de continuar! Hoje em dia vejo o meu abraço como força, como esperança, para lhes mostrar que um dia vai doer um bocadinho menos. 
A esposa agarrou-se a mim em desespero, e algumas lágrimas correram-me pelo rosto, não contava com elas, confesso, deixei-os entregues ao seu sofrimento e saí para me recompor... Retomei com toda a minha força.

A esposa que esteve presente em todo o processo, acabou a sentir-se mal e quase desmaiou, infelizmente eu sabia que isso iria acontecer e fiquei presente para puder  actuar quando isso acontecesse. 

Saíram do hospital apenas quando todos se sentiram preparados.

Nós lá ficamos, a cuidar de tantos outros familiares que querem voltar para as pessoas que amam... Eu tenho uma equipa fenomenal, que dá 200% num dia menos bom e dá 1000% num dia excelente.

A maioria da minha equipa são como eu, pessoas que não nascemos no país, pessoas que abandonamos a nossa terra e os nossos familiares, que nos privamos de olhar por eles para olhar pelos familiares de milhares de pessoas que desconhecemos. 

O turno passou, e os envolvidos jamais o esquecerão. A família terá uma longa luta pela frente. Hoje nós regressamos para cuidar de 39 doentes, algumas caras que já lá estavam ontem, caras novas que chegaram durante o dia... e la estaremos preparados para dar 1001% se for preciso.





foto retirada da internet da página da associação aviso

4 comments:

  1. Continua, continua sempre assim com esse teu espírito bom :) és um exemplo assim com todos os enfermeiros que já passaram por mim :) bem hajam!
    Bjinhosss
    https://matildeferreira.co.uk/

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  2. A minha saúde é pouca portanto fico mts vezes internada e, ao ver os enfermeiros, penso mt em como lidarão com a morte dos doentes.
    Força linda!

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  3. Gostei mesmo deste texto! Enquanto estudante e estagiária em vários serviços, nunca tive de lidar com este "problema" e não consigo imaginar como será a minha reação, quando entrar no mundo do trabalho, e tiver frente a frente com esta situação...

    https://mundodablue.blogspot.pt/

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  4. Grande texto! O teu trabalho é de louvar! Passar por essas situações é brutal e o estofo que vocês tem de ter mais brutal ainda é!
    Deixa-me contar-te que quando a minha mãe morreu eu não estava presente, recebi a noticia pelo telefone ás 9 da manhã, após ter atendido uma cliente (trabalho num CCenter) velhota, que basicamente estava a ser aldrabada pelos filhos que lhe diziam ter pago as facturas e quando ela foi ver já tinham 4 em atraso. Durante essa chamada eu sabia que havia algo de errado, porque já tinha visto duas chamadas não atendidas do meu pai. Mas levei a chamada até ao fim, tentei resolver o problema à velhota e fiquei de consciência descansada de que fiz o meu melhor. Prometi a mim mesmo, que tal como tinha sido até então, sempre iria fazer com que os meus pais não tivessem de passar por isto. Esta fragilizada e já de lágrima no olho, quando liguei para o meu pai, o silêncio dele, foi uma bomba atómica para mim! Desmoronei!
    Naquele dia ainda consegui desmoronar ainda mais quando uma chefe, seca de absolutos sentimentos me disse "Isso passa"! Brutal não é?? Eu também achei...

    Continua com o teu óptimo trabalho!Também te passarei a seguir!
    Sandra C.
    https://bluestrass.blogspot.pt/

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Saudações Negras